quinta-feira, 15 de abril de 2010

O mais anticristão dos agnósticos

Amálgama

por Daniel Lopes – Se você não conhece Bertrand Russell (1872-1970), é capaz de achar que o lançamento de Por que não sou cristão (L&PM, 2008) não passa de mais uma gota no mar de traduções recentes que apresentaram ao público brasileiro pensadores ateus relevantes, como Cristopher Hitchens, e banais, como Sam Harris, pra não falar da ressurreição de Nietzsche. O que não é verdade.
A começar pelo posicionamento do autor – agnóstico, e não ateu – e pela concepção do livro. Publicado originalmente em 1957, não é uma obra homogênea pensada para atacar a religião. Trata-se da reunião de textos e discursos de Russell publicados e proferidos ao longo de vários anos, e que abordam tanto a fé cristã (especificamente, a católica) quanto temas mais “amenos” – como a liberdade de expressão – e outros nem tanto, mas que ainda assim não se apresentam como um ataque direto à crença em Deus – como os direitos sexuais, inclusive dos jovens.
Neste último aspecto, sou tentado a comparar as idéias de Russell com as de seu contemporâneo Wilhelm Reich, famoso psiquiatra alemão que publicou A função do orgasmo (1927) e A revolução sexual (1936), entre outros. Em um texto de Por que não sou cristão, “Será que a religião fez contribuições úteis para a civilização?”, de 1930, o prêmio Nobel inglês defende que “não existe embasamento racional algum para manter uma criança ignorante a respeito de qualquer coisa que ela deseje saber, seja sobre sexo ou qualquer outro assunto”. Outro artigo, “Nossa ética sexual”, data de 1936.
Para além da educação sexual na infância e na juventude, Russell também se antecipou à sua época ao analisar os benefícios de políticas públicas que visassem a propagação de métodos anticoncepcionais. Quanto às jovens, “é indesejável, tanto psicológica quanto educacionalmente, que as mulheres tenham filhos antes dos vinte anos. Nossa ética deve, portanto, ser tal que torne rara essa ocorrência”; já em relação aos jovens, “não é nem provável que eles vão permanecer castos no período dos vinte aos trinta anos, nem psicologicamente desejável que o façam”.
Ao defender uma vida sexual ativa para ambos os sexos, Russell mirava a prostituição, que considerava abominável, e o casamento como um negócio, onde a mulher troca seu dote físico por uma confortável vida financeira ao lado do marido. Contra essa pervertida moral puritana, o filósofo tinha uma frase lapidar: “o sexo, mesmo quando abençoado pela Igreja, não deveria ser uma profissão”.
Como seria quase impossível de não acontecer, alguns textos de Por que não sou cristão caem na armadilha da qual, em um momento ou outro, poucos propagandistas do secularismo escapam, a saber, o cientificismo, ou a ciência como panacéia. Assim, a pouco menos de uma década do início da carnificina que seria a Segunda Guerra, encontramos Russell escrevendo que “os preceitos religiosos datam de uma época em que os homens eram mais cruéis do que são e, portanto, têm a tendência de perpetuar atrocidades que a consciência moral desta época, de outro modo, superaria”; ou que “com a técnica industrial que temos hoje, poderemos, se assim desejarmos, fornecer subsistência tolerável para todos”.
É bem verdade que esse “se assim desejarmos” salva o autor da infelicidade total, mas de qualquer forma é impressionante que alguém com tanto espírito e visão tivesse caído na conversa da tecnologia como garantia para uma moral mais avançada que a das gerações anteriores. Raciocínio que subestima a capacidade que líderes e cientistas nacionalistas ou racistas têm de convencerem autoridades e hordas religiosas da importância de uma expansão territorial ou uma limpeza étnica.
Sim, mas… e o cristianismo, onde entra?
Calma. Você que pensa em comprar o livro porque se interessou pelo título também não vai sair de mãos abanando desta resenha.
A ironia, meus amigos e minhas amigas, é uma coisa muito útil, não é verdade? A ironia, a graciosidade, a leveza, a objetividade do texto. Sisudez por sisudez, por que alguém preferiria um inimigo da religião a um religioso ortodoxo? Então, eu provavelmente não estaria desperdiçando meu tempo (nem o de vocês) se o livro do senhor Russell não tivesse lá, junto com a gama de indignação e seriedade, alguma graça.
Exemplificaremos bem o tipo de ataque à fé cristã por parte de Russell se citarmos que ele considera o próprio Cristo um sujeito com momentos dignos (principalmente quando pregava), mas longe de ser um modelo de comportamento (principalmente quando agia). Ou seja, toda a Igreja Católica (e por extensão a fé cristã) teria sido erguida em nome de um homem dito santo, mas, na verdade, nem pior nem melhor que a média do resto dos humanos.
Estou me segurando pra não soltar o lugar-comum mais surrado que baú velho que diz ser direito de cada um acreditar que Cristo foi um homem santo – ou não. Mas que tal atentar para algumas passagens das Escrituras, como aquela em que Jesus se dirige à mãe secamente com um “mulher, que tenho eu contigo?” (João, 2:4). E a neurose que fazia esse pregador oriental (a exemplo de muitos outros) se sentir o centro do mundo? Em nome dessa megalomania, o Filho chegou mesmo a atentar contra a instituição família: “(…) vim separar o filho do seu pai, e a filha da sua mãe, e a nora da sua sogra. (…) O que ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mateus 10:35-37). E olha que aqueles que relatam essas e outras pérolas, os discípulos, o fazem de uma perspectiva benevolente.
Ou seja, Russell não é cristão, antes de tudo, porque se trata de uma crença baseada numa fraude, num homem-fraude, muito inferior a Buda ou a Sócrates – este último fazia a besteira de ouvir com respeito aqueles que discordavam de suas idéias, ao passo em que Jesus bradava aos que não eram muito fãs de suas pregações: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação ao inferno?”
Começando mal, a Igreja ao longo do tempo foi se tornando pior ainda (pelo menos até tempos recentes, quando foi obrigada a se ajustar ao ambiente de bom senso trazido por alguns protestantes e secularistas). Para comprovar, basta ver o tipo de gente que ela sempre elege para santo. Escreve Russell, bem a seu estilo:
A Igreja nunca consideraria um homem santo por ter reformado as finanças, ou as leis criminais, ou o judiciário. Tais contribuições simples ao bem-estar humano eram consideradas sem importância. Não acredito que haja em todo o calendário um único santo cuja santidade esteja relacionada à utilidade pública.
É digno de nota, ainda, o apêndice de Por que não sou cristão, que lembra em detalhes repulsivos como foi o processo que, no início da década de 40, proibiu Russell de lecionar na Faculdade Municipal de Nova York. A acusação foi, basicamente, de que o despudorado inglês corrompia a juventude.

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