quarta-feira, 14 de abril de 2010

A ética religiosa da sexualidade

Amálgama
por Fernando da Mota Lima – Bertrand Russell foi provavelmente o filósofo que no decorrer do século XX mais tenazmente combateu a religião. Melhor dizendo, mais combateu o Cristianismo, que é a tradição religiosa hegemônica no Ocidente. Nisso, como em tanto mais, Russell renovou nossa memória de Voltaire, o mais virulento anticlerical dentre os grandes secularistas do Iluminismo. Assistimos hoje a uma renovação da crítica à religião em geral, não apenas ao Cristianismo e suas múltiplas ramificações.

A crítica procede de fontes filosóficas e sobretudo científicas. Procede ainda da aceleração dos processos de secularização e racionalização impostos pelo desenvolvimento da ciência e do capitalismo que, tudo convertendo em mercadoria, tende a suprimir o sagrado do horizonte da cultura contemporânea. É certo que o sagrado se refaz noutras formas, o que leva alguns estudiosos a postularem um reencantamento do mundo em oposição a Max Weber, que previu o desencantamento do mundo como consequência dos processos de secularização e racionalização acima mencionados.

Em meio a essas turbulências profundas que tanto desnorteiam nossos referenciais culturais e éticos, o Cristianismo – para não falar das religiões marginais aos processos de modernização do Ocidente – persiste no seu combate à sexualidade. Em meio a uma atmosfera de franca permissividade sexual, sobretudo em países como o Brasil, a religião mobiliza ainda e sempre suas armas enraizadas na tradição, saturada de componentes patriarcais, para vetar a legalização do aborto, o casamento dos padres católicos, a prática sexual independente do casamento, a legitimidade dos direitos da mulher e dos homossexuais etc. Como não tenho nenhuma competência religiosa e muito menos teológica para examinar este problema, atrevo-me a sugerir algumas razões históricas passíveis de lançarem alguma luz sobre os fundamentos da ética sexual adotada pelo Cristianismo.

Em sua monumental História da filosofia ocidental, Bertrand Russell dedica um capítulo aos doutores do Catolicismo: Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho. Além de contemporâneos, importa ressaltar o fato de que testemunharam a decadência do império romano e as invasões bárbaras que mergulharam o Ocidente em séculos de atraso. Embora vivendo uma das mais profundas crises da história da humanidade, todos deram mais ênfase à luta contra o pecado, em particular o pecado da carne, além de velarem pela preservação da virgindade feminina. Mesmo Santo Ambrósio, que se distinguiu antes de tudo na luta travada entre a Igreja e o Estado, conferiu prioridade à ética de natureza sexual.

Como grande historiador da filosofia, Bertrand Russell procura compreender essa realidade dentro das condições próprias à época em que os doutores sagrados do Catolicismo viveram. Ainda assim, não contém o espanto com que narra a obsessão dos santos com os pecados da carne. É interessante salientar que a obsessão com os pecados da carne impõe vetos e punições sobretudo à mulher, que desde o mito da expulsão do Éden é representada como um ser seduzido pela carne, além de representar uma permanente ameaça para o homem. Considerando que o Cristianismo foi forjado em sociedades agrárias de rigorosa orientação patriarcal, nada há de surpreendente no fato que acabo de assinalar.

Santo Agostinho, como Santo Ambrósio e São Jerônimo, coloca o pecado no centro de sua concepção teológica. Quando irrompe a Reforma Protestante, Lutero herda da teologia agostiniana a mesma obsessão com o pecado. Seguem-no nessa tendência todos que lideraram ou seguiram as diferentes seitas de inspiração protestante, sobretudo as puritanas. Bastaria observar, nessa perspectiva, filmes como A letra escarlate e As bruxas de Salem, o primeiro baseado no romance homônimo de Nathaniel Hawthorne, o segundo numa peça de Arthur Miller.

Suponho que a tradição acima grosseiramente esboçada explica a leniência, quando não cumplicidade, com que o Catolicismo, notadamente brasileiro, considera o mal corrente no universo da política, por exemplo. Confesso ter ainda grande dificuldade para compreender tamanha disparidade do ponto de vista racional. Mesmo admitindo-se que uma pessoa peca ao adotar práticas sexuais contrárias a nossas crenças religiosas, o mal em que incorre afeta apenas a ela, ou a quem com ela livremente se envolva. Ora, o mal praticado por um político corrupto, por exemplo, é de consequências incomparavelmente mais graves. O que representa o “pecado” de um homossexual, o “pecado” de uma adúltera, ou de uma mulher que incorre no crime do aborto, comparados aos bandidos que saqueiam cofres públicos privando milhares de brasileiros de serviços sociais necessários à sua sobrevivência, à possibilidade de uma vida elementarmente decente?

Enquanto bandidos e corruptos saqueiam impunemente recursos públicos colossais, as necessidades sociais básicas vivem entregues à ineficiência e à carência que impõem terrível opressão cotidiana a grande parte da população. Em suma, que mal representa para o mundo um “pecador” da carne comparado à corrupção endêmica das práticas políticas que envenenam nossas relações sociais? No entanto, a maior parte dos religiosos deplora e quando pode persegue e pune apenas a quem cede às tentações da carne.

Quando inverto o lugar comum afirmando que a carne é forte, não pretendo com isso implicitamente aprovar a sexualidade infrene dominante na cultura do presente. Meu intento é apenas denunciar o absurdo de qualquer ordenação ética da sexualidade que incorra na insensatez de determinar a supressão de forças que são parte da nossa natureza. Foi com esse propósito que num outro artigo aludi à inoperância de uma ética religiosa orientada para a supressão da sexualidade. Disse e reitero que isso é pura perda de tempo. Toda a história da humanidade, mesmo nos períodos de mais profunda e contrita religiosidade, testemunha a presença de nossa energia libidinal que, como escrevi, pode ser em certo grau reprimida, noutro sublimada, mas nunca suprimida.

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