terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Maria, a Sequinha

- Seca! Sequinha!

Um grupo gritou ao passar por mim. Cansada, não reagi.

Costumava responder gritando que não era, e revidava os desaforos levando-os a rir.

Nos últimos dias estava diferente, mais quieta, pensativa e já não achava tão injusto estar naquele lugar sofrendo.

Nair aproximou-se e sentou-se ao meu lado, numa pedra.

- Está quieta hoje, Seca, quer dizer, Maria.

Nair era uma mulher que se julgava esperta, entendida, e às vezes conversava comigo.

- Hoje quero escutá-la com atenção. Fale-me, por favor, onde estou e o que aconteceu comigo.

- Devia cobrar pelos meus conhecimentos! Mas como gosto de falar, vou lhe explicar. Fique atenta! Você morreu! Não fique com medo! Nada de pior poderá lhe acontecer e...

Alguém a chamou. Nair levantou-se, caminhou para perto de um moço e ficou conversando. Pensei no que ela me disse.

"Morri! Estava havia tempos naquele lugar e ali eles me diziam sempre que morrera. Achava que ao morrer iria para o céu, pois merecia. Mas como não fui, tive medo, pavor e vivia aterrorizada me indagando: E agora?"

E o pior, não obtinha resposta.

Nair despediu-se do moço e sentou-se novamente perto de mim.

- Como ia falando, você morreu, porque todos morrem. Certamente não foi, encarnada, boa coisa porque veio para cá. Eu sei bem como tudo isso acontece, é a morte. Alguns dizem que não morremos, e eles têm razão, já que apenas o corpo carnal vira pó lá no cemitério. Por isso, dizem que desencarnamos, deixamos a carne. Pessoas que viveram fazendo o bem vão para outros lugares, já vi de perto as casas delas. E outras como você e eu vêm para cá. O segredo é fazer amigos. Eu tenho muitos por aqui. Apesar de que eles não confiam em mim nem eu neles. Dizem que entre os bons existe confiança. Mas não tive nenhum amigo bom.

Aproveitando que ela fez uma pausa, indaguei-a:

- Você é feliz? Sou muito infeliz!

-Você é infeliz porque vive reclamando! Com dó de você mesma! Pelo menos está consciente. Não vê à sua volta muitos sofrerem bem mais? Vemos por aí os dementados, que padecem tanto que já nem sabem quem são. Existem os que são tratados como escravos e são maltratados e há os que são presos em buracos ou então em prisões horríveis. Sou alegre!

- Feliz? - insisti.

- Acho que não. Tenho pensado e acho que somente pessoas boas são felizes. Aqui é um tal de dá lá e toma cá.

- Nairzona, vamos lá? - chamou-a um moço.

Nair levantou-se e seguiu um grupo, sem se despedir de mim.

- E agora? E agora? - resmunguei.

O umbral não é um lugar agradável, detestava-o. Andava por ali sentindo os reflexos do meu corpo físico, sentia dores e fome, não tinha sede porque tomava água de um filete sujo. Sentia muito frio. À noite era pior, escuro e muito frio. Tinha muito medo. Mas como Nair me disse, existiam muitos que sofriam mais do que eu.

Fiquei recordando minha vida encarnada. Fui abandonada muito pequenina num orfanato. Deram-me o nome de Maria. Nunca tive um amigo.

- Acho que era uma criança problemática! - exclamei baixinho.

Apesar de não ter sido feia, não fui escolhida para adoção e fui ficando.

"Maria, tenho muito o que fazer!" - diziam as funcionárias.

"Maria, não é somente você que temos aqui! Temos de cuidar de todos. Venha nos ajudar" - diziam as bondosas irmãs, as freiras que cuidavam do orfanato.

Não ajudava. Queria atenção, desejava que alguém ficasse comigo o tempo todo.Quando alguma das meninas, internas como eu, me dava um pouco de atenção, queria que fosse somente minha amiga e fizesse o que eu quisesse. As garotas se cansavam, deixando-me sozinha.

"Maria" - dizia sempre Madre Terezinha, - "Você não pode agir assim. Vá brincar, converse, dê amizade para também recebê-la. É dando que se recebe.

E eu somente queria receber.

Na adolescência pensava: "Não recebo nada, por que então dar?" Amarga, desiludida, rancorosa e até invejosa, fui ficando sozinha.

A diretora do orfanato me arrumou um emprego de doméstica, trabalhava durante o dia e dormia no orfanato. Não era agradável fazer todos os dias a mesma coisa - serviços de casa -, mas era bem melhor do que ficar o dia todo no orfanato; pelo menos trabalhava, tinha um ordenado e alimentava-me melhor. Comprava, com o meu salário, objetos para mim. Nunca dei nada a ninguém. Achando que as meninas mexiam nas minhas coisas e que tinham inveja de mim, pedi para meus patrões me deixarem dormir na casa deles.

As irmãs se reuniram para a despedida, contrariada escutei-as, não prestei atenção nos conselhos nem no pedido para visitá-las.

- Começo a achar que fui injusta e ingrata - resmunguei baixinho. - O orfanato foi o meu lar, a casa que me abrigou, e onde recebi cuidados.

Meu patrão matriculou-me na escola para completar meus estudos. Lá também não fiz amizade com ninguém. A escola era simples, para mim, freqüentada por pobres e invejosos. Até que no começo algumas garotas tentaram conversar comigo, mas diante de minha indiferença, não se aproximaram mais. Preferi assim.

Trabalhava direito, fazia do melhor modo possível minhas obrigações. Ganhava roupas que desprezava por serem usadas, mas as vestia assim mesmo.

"Maria!" - disse meu patrão. - "Vai ter um concurso para faxineira em uma repartição pública. Você quer se inscrever? O salário é bom.

"Mas se eu passar, onde vou morar? E quem cuidará de vocês?"

"Coitadinha, ela se preocupa conosco!" - disse minha patroa.

Não me preocupava com eles, mas sim comigo. Na casa deles tinha um quarto nos fundos, com banheiro e alimentava-me bem.

Meu patrão sorriu e falou.

"Maria, com o salário que irá receber, você alugará uma casinha e nós buscaremos outra mocinha no orfanato para trabalhar aqui em casa.

Uma casinha, um lugar somente meu, era um sonho, o que mais desejava. Esforcei-me para passar e ganhei o emprego. Meus patrões ajudaram-me a alugar uma casinha e a comprar, à prestação, os móveis. Deixaram-me instalada. Agradeci-os, porém foi somente por educação. Achei que eles deviam estar satisfeitos pela boa ação que fizeram.

- Fui injusta com eles! - falei.

E fui mesmo. Nunca mais fui visitá-los e quando eles tentaram me visitar, fingi que não estava em casa e não abri a porta. Desistiram.

No meu emprego fazia bem meu trabalho. Mas não fiz amizades. Não gostava dos companheiros, achava isso de um, aquilo de outro, via neles muitos defeitos. Novamente queria somente receber. E quando recebia não dava valor e queria mais, achando que as pessoas tinham obrigações comigo. Espantava todos os que se aproximavam de mim.

"Maria, me faz um favor?"

"Não!"

Nem queria saber o que era. Achava que todos queriam abusar de mim.

- E com isso também não recebi! Que pena! - exclamei.

Uma vez, interessei-me por um colega que era risonho, agradável e conversava com todos. Achei-o lindo! Fiz planos e me iludi.

Um dia ele chegou muito feliz, mostrou a todos a aliança, ficara noivo. Odiei-o. Resolvi vingar-me e acabar com ele. Planejei com detalhes um roubo em que ele seria acusado. Mas não tive coragem. Afastei-me ainda mais de todos. Percebi que ao chegar e encontrar meus colegas de trabalho conversando, eles paravam ao me verem. Meu chefe até tentou orientar-me dizendo que deveria ser mais sociável.

"O senhor não está satisfeito com meu trabalho? Faço algo errado?"

"Não" - respondeu ele.

Desistiu também. Um dia escutei dois companheiros de trabalho conversando. Um deles falou:

"Maria me seca! Sinto-me mal perto dela.

Aposentei-me. Saí do último dia de trabalho como outro qualquer. Mas senti muito a falta do emprego e a solidão. Não conversava com os vizinhos, achava que eles somente queriam favores. Fiquei doente e não tinha ninguém nem para me acompanhar às consultas médicas. Por causa de uma enfermidade nos rins, sentia muitas dores.

Em uma consulta, o médico me internou. Não conversei com ninguém no hospital, e ali morri sozinha. Agora sabia que morri ali, internada. Porque no momento não percebi. Achei que estava sendo desprezada, que não me davam remédios nem conversavam mais comigo. Resolvi ir embora e ninguém se importou. Saí andando, arrastando-me e fui para casa. Lá me assustei, haviam tirado tudo o que era meu e outras pessoas já moravam ali. Gritei e ninguém me ouviu.

Fui então à polícia; havia uma delegacia perto de casa e fui andando com dificuldade. Lá, vi muitas pessoas estranhas. Do lado de fora do prédio estava um grupo esquisito que riu ao me ver.

- Seca! Já sabe que morreu? Se não sabe, fique sabendo!"

- Doido! - respondi.

Discuti com eles e os ameacei, dizendo que ia dar queixa ao delegado. Eles me pegaram pelos braços, arrastaram-me e deixaram-me nesse lugar horrível que, segundo a Nair, é chamado de umbral, um local parecido com o inferno.

Não tive religião e quando me indagavam respondia ser de qualquer uma que me vinha à cabeça; não gostava muito de orar. Sempre achara que Deus fora injusto comigo.

Não tive família, fora órfã.

Sempre fui magra, quando doente fiquei magríssima, e agora de tanto escutar que era seca, estava parecendo realmente seca.

- Ei, você aí, ajude-me!

Olhei para quem falava e vi duas mulheres deitadas no chão.

"Não posso nem comigo como vou ajudá-la?" - pensei.

Mas fui ver o que se passava.

- O que quer? - perguntei.

- Que nos ajude a sentar, pediu uma delas.

Ia me afastar, xingando, mas estava cansada de fazer isso. Nunca havia parado para atender a alguém. Não havia dado e não recebera.

Com esforço as ajudei.

- Estou bem melhor sentada! - exclamou uma delas, que me olhou, indagando: - Você gosta daqui?

- Não!

- Por que você é tão seca? - perguntou a outra.

Ia xingar, mas respondi bruscamente: - Porque sou!

- Morri e vim para cá. Acho injusto! Mas vou apelar! Tenho uma amiga que, por ser boa, deve ser amiga dos bons. Vou pensar nela e pedir ajuda. Fiz favores a essa pessoa, não vou cobrar, e sim pedir. Você não tem amigos?

- Não, respondi.

Cansada de ficar sozinha, sentei-me ao lado delas e fiquei escutando-as.

- Sentia um medo horrível de morrer. Algo me dizia, talvez minha consciência, que ao morrer ia me dar mal. E me dei. Muitas pessoas se souberem que estou aqui irão dizer: - "Bem feito!" - falou uma das mulheres.

As duas sofriam e estavam preocupadas, tinham famílias, amigos e uma delas até queria encontrar-se com eles para pedir que mudassem de comportamento, para que não viessem, ao morrer, para esse lugar.

- Seca! Sequinha!

Um grupinho passou e mexeu comigo rindo.

Elas me observaram e uma indagou-me novamente o porquê. Senti pela primeira vez a sinceridade na minha resposta: - Fiquei assim, porque fui assim! Seca de sentimentos!

- Foi, mas não deve ser mais. Você nos ajudou! - expressou-se uma delas.

Perto de nós, um homem caído no chão gemeu. Levantei e fui para perto dele.

Estava machucado, ajudei-o a sentar, peguei um pouco d'água do filete ali perto e lhe dei, passando-a também em seus ferimentos. Escutei pela primeira vez:

- Obrigado!

Senti ao ouvir o agradecimento, um leve bem-estar.

Voltei para perto das minhas recém-conhecidas e encontrei somente uma delas que me informou:

- Ela orou para a amiga e esta a levou embora. Acho que vou também orar. Estou cansada de sofrer e começo a entender que não foi injusto estar aqui.

Não briguei mais e passei a ajudar ao meu modo os que ali sofriam mais do que eu.

- Olhe, aí vêm os bonzinhos! - disse uma senhora, mostrando-me um grupo que silencioso e respeitoso passava por ali.

Já os vira, e por muitas vezes jogara pedras neles com os outros. Agora os olhava com respeito.

Aproximaram-se de nós e um deles indagou:

- Quem auxiliou aquele homem?

Tremi de medo, mas diante de seu olhar bondoso e voz agradável, respondi baixinho:

- Fui eu!

- Fez um bom trabalho. Parabéns! Não quer aprender a ajudar melhor? Não quer vir conosco?

Não sabia se queria ir, então não respondi. A senhora que estava ao meu lado me cutucou:

- Vá, não seja boba! Essas pessoas são de fato boazinhas e realizam muitas ajudas. Com eles você certamente não sofrerá mais. Talvez deixará de ser sequinha.

Ele, o socorrista, estendeu-me a mão, segurei-a com firmeza. Minha vida mudou.

Fui para um posto de socorro, uma das casas que já vira; fui tratada com carinho e esforcei-me para ser simpática e útil. Minha aparência mudou, não era mais seca. Depois de meses, tornei-me trabalhadora, fazendo favores.

Aprendendo a dar, principalmente amizade, fiz amigos. Estou bem.

Quando estava no umbral, essa pergunta: "E agora?", muito me angustiava.

Soube que desencarnara por outros desencarnados que vagavam, de modo maldoso e com ironia.

Achara que não fizera maldades; afinal, não traíra, não matara, não roubara etc.

Mas fora ingrata, intolerante e não fizera o bem. Por mais que me esforçasse, no umbral, não consegui me recordar de ninguém que me devia um agradecimento por algo que fizera de coração, com bondade.

Fiquei de fato magríssima, sequinha, como era chamada. Acho que foi por sentir-me assim, vazia; não dei a ninguém a sombra de uma amizade, não dei frutos de favores ou de compreensão. De vazia à seca. Sei que em muitas de minhas encarnações fui intolerante, não dei valor aos afetos e, nesta última, tive por lição a orfandade, e em vez de entender e de me esforçar para conquistar as pessoas pela amizade, desprezei-as e sofri.

Ainda bem que temos sempre várias oportunidades de preencher o vazio com o bem. Estou aprendendo!

Nada mais certo do que este ensinamento: é dando que se recebe, é compreendendo que se é compreendido, tolerado e amado!

MARIA


Explicações do Espírito Antonio Carlos:

Tenho conversado com muitos desencarnados que tiveram grandes decepções ao mudar de plano e não foram socorridos, ficaram vagando ou até foram para o umbral, gabando-se de não ter feito o mal, mas também, não fizeram o bem que poderiam ter feito...

Maria se sentiu vazia de atos e como escutou muitos a chamando de seca, sentiuse assim.

E foi somente quando começou a se preocupar com o próximo, ajudar, que foi sentindo-se melhor e pôde ser socorrida.

A vida sempre nos dá oportunidades de aprendizado, de fazermos o bem, estando encarnado ou desencarnado. A Lei do Retorno nos faz ter reações boas ou más, e aquele que não fez nada, não tem o que receber. E por não ter amizade e amor, sofre muito!

Poderia ter sido diferente para Maria se quando encarnada tivesse sido mais agradável, prestativa e caridosa. Ainda bem que reconheceu que errou e está se esforçando para mudar a forma que agia. Porque é realmente dando que se recebe.

(Trecho extraído do livro: "Morri, E Agora?" - psicografado pela médium Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho com explicações do Espírito António Carlos - Petit editora)

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