Confesso que me surpreendi. Tenho notado nas declarações e atitudes do Papa Francisco um sentido de modernidade que vai ao encontro de grande parte dos costumes e aspirações de nosso tempo, a maioria dos quais ainda ontem combatidos pela Igreja.
Mas essa de proibir se espalhem as cinzas da cremação do corpo de um ente querido na natureza, ou mesmo de guardá-las respeitosamente em casa, como lembrança material daqueles que partiram, contraria uma saudável tendência ecológica e, penso, muito saudável. Em vez disso, o Vaticano recomenda que “as cinzas do defunto devem ser mantidas em um lugar sacro, ou seja, nos cemitérios”.
O pó que (não) somos
Não vejo nada mais “sagrado” do que a Natureza. E isso não significa necessariamente uma adesão ao que a Santa Sé classificou como “equívoco panteísta” ou “niilista”. Nosso corpo, segundo a própria tradição cristã, é parte intrínseca da natureza, pó ao qual retornará, quando dele tiver que se separar o espírito: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris” (Lembra-te, homem, que és pó e em pó te hás de tornar), dizia o padre no meu tempo de seminarista, fazendo uma cruz com cinzas em nossas testas, na quarta-feira que se sucedia ao carnaval.
Nesse mesmo sentido, numa perspectiva espiritualista, em que se tem o espírito como sendo nosso próprio “eu” e o corpo como sua roupagem provisória, jogar nossas cinzas ao mar, espalhá-las entre as árvores de um bosque ou, mesmo, guardá-las em aprazível recanto da casa que nos serviu de morada, são manifestações de carinho e reconhecimento à matéria que instrumentalizou o espírito na jornada finda.
A “capsula mudi”
Rubem Alves, escritor e educador, que nos deixou há cerca de dois anos, antes de morrer, pediu que cremassem seu corpo e jogassem as cinzas junto a um ipê roxo que ele havia plantado. Um jeito gostoso de mantê-lo fisicamente entre seus queridos.
Mas, agora surgiu algo bem mais interessante. Li, esses tempos, sobre o projeto “capsula mundi”. Um italiano bolou uma cápsula orgânica e biodegradável projetada para transformar um corpo em decomposição em nutrientes para uma árvore. A ideia é de que o sujeito escolha a árvore em que deseja transformar seus restos mortais.
Sina-sina ou araucária?
Gostei da ideia. Se a moda pegar, fico na dúvida se opto por ser uma modesta sina-sina, arbusto humilde que povoou o cenário de minha infância, na região da Campanha do Rio Grande do Sul, ou uma majestosa araucária, tão abundantes foram elas no lugar, então ainda rico em matas, em que passei parte de minha juventude, na Serra Gaúcha.
O que, decididamente, não quero – e tenho repetido com insistência isso a meus familiares - é que meu corpo se decomponha na fria tumba de um cemitério. Não vejo nada de sagrado nisso. Se existe algo de “sacro” na vida, é a própria vida, que transcende à morte e nos perpetua como seres inteligentes da natureza que integramos.
(Coluna publicada nas edições de dezembro/2015, dos jornais OPINIÃO, do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, e ABERTURA, do Instituto Cultural Kardecista de Santos)
por Milton Rubens Medran Moreira
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